20 de março de 2011

"o fim da infância (1850-2009)"


a infância é uma ideia, uma abstração, um paraíso artificial. entenda como ela foi inventada e no que pode dar a sua desinvenção.

o conceito de infância faleceu em 7 de julho de 2009, vítima de causas múltiplas. consagrada no século 19, a ideia de uma etapa da vida protegida dos males do mundo já vinha com a saúde declinante havia 50 anos, atingida pela era da informação e pela expansão da adolescência, entre outros fatores. o que determinou a morte foi a participação de paris katherine no funeral de seu pai, o cantor michael jackson. ("ele foi o melhor pai que se pode imaginar", disse paris). bastou para que explorassem a imagem da menina de 11 anos, complicando uma vida que já não será fácil. não interessa se ela é criança - é uma celebridade como as outras. juridicamente, a infância sobrevive: vai até os 12 anos.
o obituário acima é uma provocação - se você acompanhou o caso, pode até argumentar que o fez somente por curiosidade. mas já faz pelo menos duas décadas que estudiosos da cultura contemporânea veem eventos como esse e concluem: a infância está desaparecendo.
não é que os seres humanos estejam engrossando a voz logo que aprendem a falar. a diferença é que esses jovens seres, que havia séculos habitavam um mundo que construímos para eles, há algum tempo vêm usufruindo dos prós e contras do universo dos adultos.
"a infância é um artefato social, não uma categoria biológica", escreveu o americano neil postman. provando que a infância era uma invenção cultural, o historiador alertava que a mesma sociedade que a criou poderia determinar o seu fim. no começo dos anos 80, ele via como principal ameaça o fato de adultos e crianças verem os mesmos programas de tv - nem imaginava a banda larga que viria pela frente. mas, já que o assunto é infância, sejamos didáticos: vamos começar do começo.

a invenção da infância
aos 13 anos, o príncipe alexandre, que ainda não era o grande, começou a ter aulas com aristóteles. aos 16, já comandava exércitos da macedônia. a transição brusca do banco da escola para a cela do cavalo é um bom exemplo de como os gregos e romanos viam seus jovens abastados: se vivessem o suficiente, poderiam adquirir alguns conhecimentos úteis e, assim que possível, deveriam estar aptos para todas as demandas do mundo adulto.
na idade média, a vida das crianças piorou. as que chegavam até a idade de conseguir segurar um instrumento de trabalho quase sempre aprendiam a profissão de seus pais. o acesso à educação ficou muito restrito: os mosteiros detinham o monopólio do conhecimento, e não tinham interesse em disseminá-lo para além de suas paredes. (fãs de o nome da rosa talvez se lembrem dos monges que morreram tentando ler um livro proibido.)
esse estado de coisas, estabelecido ali pelo século 5, só foi alterado com a invenção da imprensa, em 1439. sim, imprensa: o consenso entre os historiadores é de que ela é a mãe da infância, por ter permitido a popularização dos livros e o ressurgimento das escolas. como explica neil postman em o desaparecimento da infância: "em um mundo iletrado, não há necessidade de distinguir com exatidão a criança e o adulto, pois existem poucos segredos e são poucas as instruções para dominar a cultura cotidiana. em um mundo letrado, as crianças precisam transformar-se em adultos". gradualmente, aqueles serezinhos que nem constavam nos testamentos e que não ganhavam pão se os adultos tinham fome se tornaram investimentos de longo prazo. o burguês esperto que colocasse seus filhos na escola estava tão-somente buscando garantir o seu futuro.
justificado economicamente, o confinamento dos jovens em ambientes separados do dos adultos começou a suscitar sentimentos em pais e mestres, que passaram a acreditar que aquela parcela da população tinha "outra natureza e outras necessidades", nas palavras do historiador inglês j.h. plumb. o iluminismo e as revoluções burguesas inspiradas por ele transformariam essas boas intenções em conquistas reais: os novos códigos civis reconheciam as crianças como sujeitos com direito a proteções legais específicas e necessidades especiais.
mas havia outra revolução no meio do caminho: a industrial. as novas fábricas fizeram milhares de pais rever seus conceitos recém-estabelecidos para botar os pequenos a trabalhar e ajudar no orçamento familiar. foi preciso que uma ideia "inusitada e radical", como define postman, entrasse em vigor: o estado passou a se dar o direito de agir como protetor das crianças. e, com o governo no papel de tia da creche, a infância foi brincar tranquila.
em 1850, a transição está completa. o mundo, que era um só, virou dois: o das crianças e o dos adultos. é nele que se falam sobre diferenças entre classes sociais, morte, doença, violência, dinheiro e, o segredo mais bem guardado, o sexo. de assuntos como esses, as crianças deveriam ser poupadas, em nome de uma infância sadia.

tudo pela tela
assim como a imprensa é considerada a pedra fundamental sobre a qual se construiu a ideia de infância, a popularização da tv é considerada o princípio da depredação do prédio.
se o mundo letrado havia criado culturas separadas para adultos e crianças, assuntos de gente grande e gente pequena, ao reunir a família toda em volta de sua tela, a televisão voltou a aproximar esses dois mundos. ou melhor: como aquela criança mais velha que ensina palavrões para as menores, ela volta e meia transmitia conhecimentos que os pais preferiam que seus filhos ainda não soubessem. "o acesso das crianças a informações do mundo adulto transformou tudo drasticamente", garante joe kincheloe, coautor do livro cultura infantil e professor de estudos culturais e pedagogia na universidade penn state.
naquelas residências onde essas transformações nem foram sentidas como tão drásticas assim, além de amiga indiscreta, a tv acabou cumprindo o papel de babá eletrônica. é aí que entra na equação o que os especialistas chamam de pedagogia cultural corporativa - a parte da nossa criação realizada pela indústria do entretenimento. parece banal, mas era um fato inédito na história do nosso desevolvimento. se antes as memórias de infância eram criadas sob a supervisão dos pais ou na companhia de outras crianças, agora elas vinham da tv, da música, dos filmes. "por decisão ou omissão dos pais, mais e mais experiências dos nossos filhos são fruto de conteúdos produzidos por corporações comerciais", diz kincheloe.
é inegável que as gerações que cresceram na frente da tv tiveram acesso a um volume de informações muito maior do que as anteriores - sem fazer juízo de valor sobre essas informações, que poderiam ser fofocas sobre a filha do michael jackson. a verdade é que a quantidade de tempo na frente da tela foi aumentando a cada década, chegando ao ápice nos anos 90. e então ela começou a cair. para desespero dos pais, porque agora as crianças podiam aprender o que quisessem em outra tela, a do computador.
nas últimas páginas de o desaparecimento da infância, neil postman faz uma ressalva: "a única tecnologia que tem potencial para sustentar a necessidade de infância é o computador". e explica: "para programar um computador, é preciso, essencialmente, aprender uma linguagem. isso significa que é necessário dominar complexas habilidades analíticas [grifo meu] semelhantes às exigidas de uma pessoa plenamente alfabetizada, e para isso é indispensável treinamento especial". bom, hoje muitos estão na internet antes de plenamente alfabetizados, tendo acesso a muito mais informações do mundo adulto - uma expressão que, nessa altura do século 21 e do texto, já não faz mais nenhum sentido.

tobogã abaixo
o que a imprensa colocou de pé a tv e a internet vêm colocando de lado, mas não é só na busca por informações antes exclusivas que podemos detectar sinais do fim da infância.
a consagração da adolescência como a melhor, a mais divertida e inesquecível idade para todos os seres humanos, uma ideia que começou a pegar nos anos 50, também exerce uma pressão para que as crianças deixem logo de sê-lo. em linguagem de marketing, ser jovem é "aspiracional", algo que as pessoas aspiram, almejam, desejam. para suprir essa demanda anteriormente reprimida no estereótipo sem graça de "pré-adolescente", marqueteiros criaram o rótulo tween - um trocadilho com between ("entre") e teen ("adolescente") para inserir todo tipo de produto voltado a quem antes eram crianças de 9 a 12 anos.
os ídolos desse público podem se comportar de forma pudica, como os vampiros virgens de crepúsculo, mas, na vida real, o apelo sexual é aproveitado assim que possível. miley cyrus, 16 anos, se faz de santa no seriado hannah montana, mas posa sensual na capa das revistas. a própria xuxa achou que a princesa sasha, 10 anos, já estava precisando de um príncipe, e promoveu um concurso para escolhê-lo. o vencedor foi bruno mesquita, 15 anos, que faz o estilo "jonas brother", e os dois vão fazer par romântico em um filme.
a pressão para se tornar adulto nos relacionamentos também se reflete no campo profissional. crianças de 3 anos já estão aprendendo um segundo idioma, e as que entram no ensino básico já têm uma agenda lotada de cursos, aulas extras, grupos de estudo - nenhum pai quer que seu filho fique para trás. nos eua já há um movimento para que as escolas públicas passem menos dever de casa.
a ética profissional é incutida cada vez mais cedo. quando a menina maisa, 7 anos, teve problemas com seu chefe, sílvio santos (recapitulando: ele a fez chorar duas vezes e a prendeu dentro de uma mala), seus pais logo trataram de esclarecer que ela não deixaria de cumprir os seus contratos com o sbt.
e o que dizer do caio werneck, 9 anos, zagueiro do roma, da itália? casos como o dele, de crianças negociadas com times do exterior, são cada vez mais comuns. caio já tem uma profissão definida, a mesma que seu pai seguia, deixando a escola em segundo plano. como na idade média, quando não havia infância.

ânsia de infância
por mais que todos os programas de tv educativos e as cantigas politicamente corretas queiram, uma corrente muito forte na outra direção leva a crer que a infância clássica está com os dias contados. o que fazer? para kincheloe, a mudança tem de começar onde tudo começou: "as escolas têm de ser reformuladas desde os seus fundamentos". o currículo é organizado como se as crianças aprendessem sobre o mundo na sala de aula, ignorando todas as informações disponíveis fora dela. para ele, é preciso um modelo de infância que entenda que a crianças podem, querem e vão aprender sozinhas. "as crianças pós-modernas não pedem permissão dos adultos para aprender", diz.
quanto antes se reconhecer isso, melhor. afinal de contas, pais e mestres não deveriam esperar a indústria de celebridades passar dos limites para serem lembrados que as crianças não são mais tão infantis.


texto retirado da revista 'superinteressante', de agosto/2009, escrito por emiliano urbim.